Existe um princípio universal civilizatório de que inexiste crime sem lei anterior que o defina. Pela nossa Constituição somente a União através do Poder Legislativo poderá legislar sobre Direito Penal.
Estas verdades inquestionáveis são necessárias lembrar quando percebemos que o STF[1] em julgamento, por maioria, pensando em arrecadar mais impostos aos Estados Federados, esqueceu da Ordem Constitucional em detrimento do cidadão, ao verdadeiramente legislar criando um tipo penal decorrente da declaração e não pagamento do ICMS, gerando uma espécie de “apropriação indébita” inexistente, visando com isto a possibilidade de arrecadar milhões em impostos através da ameaça penal contra centenas e milhares de comerciantes e empresários de serviços em todo o Brasil, que poderão ser processados como “criminosos e corruptos”.
Como se vê acentua-se no país a tendência inconstitucional de usar o Direito Penal para aumentar a arrecadação de impostos, isto no momento em que a sociedade brasileira já se encontra no limite das suas possibilidades de contribuintes tributários. Seria isto a observância de um Estado Constitucional de Direito Democrático?
Os argumentos que formaram a maioria no julgamento do STF, com a máxima vênia, não são jurídicos e constitucionais, onde à teoria da repercussão econômica e a necessidade dos Estados prevaleceu sobre o princípio da legalidade penal Constitucional. A inadimplência do ICMS gera dívida civil, não sendo possível prisão por dívidas, nos termos do art. 5º, LXVIII, da Constituição Federal. Outrossim, o tributo indireto – como é o caso do ICMS onde não existe a retenção na fonte – não comporta a tese de “apropriação indébita”, não caracterizando assim a incidência do art. 2º, II, da Lei 8137/90, motivo pelo qual se percebe que o STF criou um tipo penal sem que exista Lei anterior que o defina.
A respeito da possibilidade da ocorrência da apropriação indébita na hipótese de tributos, cumpre lembrar um antigo Acórdão do TRF4, que já declarava a inconstitucionalidade do tipo penal do art. 168-A, onde surge o questionamento sobre a legitimidade penal em querer criminalizar a conduta do não recolhimento de contribuição previdenciária, onde o relator registrou:
“a) Um retrocesso em nosso Direito Penal, com a Justiça servindo de instrumento para a cobrança de tributos, truculência que a Idade Média deveria ter sepultado com a vitória de Robin Hood sobre o nefasto Príncipe João. Ao magistrado não lhe fica bem o papel de agente do Fisco, a ameaçar com o cárcere aquele que sonhou investir em atividade produtiva e não logrou o almejado êxito;
b) A presença do empresário no banco dos réus, em sua imensa maioria pequenos empresários, em sua totalidade pessoas decentes, que fracassaram em suas atividades, perderam o que de seu investiram, e que agora ainda se sujeitam a um plus de humilhação, que, conforme bem asseverou LUIZ FLÁVIO GOMES (ob. Cit. P. 247), ‘é sabido que a simples instauração do processo já atinge o chamado status dignitatis do imputado’;
c) Assoberbam-se os cartórios com ações penais absolutamente ineficazes, fadadas a uma absolvição de antemão previsível, desde antes mesmo da denúncia;
d) Fragiliza-se a Justiça ante o imenso desgaste que sofre o processo penal, dando ensejo à criação de uma imagem de impunidade de pretensos “sonegadores”, quando existe apenas inadimplemento de obrigação tributária;
e) Há perda de recursos públicos, que os processos têm custos, desde o tempo gasto por juízes e membros do Ministério Público até o papel, a tinta de computador, etc;
f) Alimenta-se a demagogia graciosa de governantes que, na tentativa de explorar a repressividade ignorante das maiorias mal-informadas, vivem a dizer que “lugar de sonegador é na cadeia” para gáudio da truculência fiscal”. Acórdão TRF 4ª Região, Apelação Criminal nº 95.04.32061-9/PR. 2ª Turma. Rel. Luiz Carlos de Castro Lugon. DJU 07.08.96. Porto Alegre. Julgado 20/06/1996.
Como se vê existe uma lamentável marcha pelo retrocesso constitucional no país, caracterizando uma verdadeira mutação constitucional inconstitucional, tema que merece um profundo exame e que não é possível nestas resumidas linhas.
Por: Ricardo Cunha Martins
Advogado; Especialista em Direito Penal; Mestre em Direito Público e Professor de Direito Processual Penal
[1] Julgamento dia 11/12/2019, onde por maioria o STF declarou que é crime não pagar o ICMS declarado, aplicando-se ao ICMS a Lei 8137/90, art. 2º, II. RHC nº 163.334. Rel. Min. Luís Roberto Barroso.
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